Pioneira na arte drag brasileira, Márcia Pantera revisita carreira e fala sobre vício em drogas: 'Há 16 anos limpa'
Drag queen Márcia Pantera, no Camarote Sensação, no Anhembi, em São Paulo Celso Tavares/g1 Na última década, as drag queens viveram uma grande explosão d...

Drag queen Márcia Pantera, no Camarote Sensação, no Anhembi, em São Paulo Celso Tavares/g1 Na última década, as drag queens viveram uma grande explosão de popularidade. As paradas musicais eram - e ainda são - dominadas por Pabllo Vittar e Gloria Groove e, nas plataformas de vídeo, o reality show "RuPaul's Drag Race", da estadunidense RuPaul, cresceu em audiência como nunca. No entanto, ao olhar para trás, é imprescindível lembrar do rugido ensurdecedor que Márcia Pantera, a rainha do "bate cabelo", já fazia desde o final dos anos 1980. Aos 55 anos, Márcia Pantera, ou Carlos Márcio José da Silva, no dia a dia, começou a carreira há quase quatro décadas, quando a arte drag sequer era difundida no país. Seu primeiro contato com o meio LGBTQIA+ foi em uma boate da capital paulista, antes mesmo de completar 18 anos. 📲 Participe do canal do g1 Sorocaba e Jundiaí no WhatsApp "Eu era menor de idade, atleta e jogava vôlei em Suzano (SP) há anos. Meu amigo me levou para uma boate pela primeira vez aos 17 anos e foi um deslumbre. Nunca havia visto dois homens se beijando. Já me identificava como gay desde os 13 e, graças a Deus, minha família me abraçou com muito carinho desde o começo", comenta. A drag, que se apresenta em Jundiaí (SP) neste sábado (16), também é atriz e descreve a sua primeira experiência na "noitada" como inesquecível. Grande amante da música da época e da extravagância, ela ficou completamente encantada ao ver uma performance artística pela primeira vez. "A música era muito boa e eu me diverti muito. Eu sempre chamava a atenção, dançava a ponto de abrir a pista para mim, e meus amigos diziam que eu tinha que começar a fazer shows. Quando eu vi o primeiro, acendeu uma luzinha na cabeça e eu pensei: 'Nossa, eu preciso começar a fazer isso'", lembra. A paixão era tão grande que, por conta disso, Pantera cogitou desistir do vôlei para focar integralmente na nova carreira. Ela decidiu, primeiramente, seguir o caminho racional, mas, depois de um tempo, o coração conseguiu falar mais alto e vencer o dilema que enfrentava internamente. "Eu passei a inventar desculpas para o técnico justamente para faltar aos treinos. Na época, a boate abria de quarta a domingo, e eu fugia do clube justamente para ir lá. Chegou um dia que o treinador veio até mim e perguntou o que estava acontecendo. Ele disse que eu tinha que escolher entre o esporte e a noite e, depois de um campeonato, eu me joguei de vez", conta. Márcia na premiere de 'Drag Race Brasil' Arquivo pessoal Do transformismo às drag queens De acordo com a artista, seu pontapé inicial foi a vitória em um concurso no qual ela se caracterizou pela primeira vez. À época, o termo drag queen não era conhecido e, no lugar dele, existia o transformismo: as artistas se montavam para imitar uma mulher já famosa. "Eu acredito que sou a primeira drag queen do Brasil e comecei aos 18 anos. Quando cheguei, havia gente já nos 40 anos, mas sempre reproduziam alguém: Alcione, Gal Costa e as vedetes dos anos 50. Elas usavam vestido, plumagem, e eu cheguei com uma calça de vinil, bota preta, maiô de onça e uma personalidade totalmente nova. Eu vi essa chavinha virar", diz. Márcia é considerada pioneira na arte drag brasileira Arquivo pessoal Márcia conta que, na verdade, tudo era diferente na cena LGBTQIA+ do final dos anos 1980, inclusive, nos mínimos detalhes. Entre eles, levar os discos de vinil com as músicas que usaria para se apresentar e, também, tirar toda a maquiagem ainda na balada por medo de ser repreendida pelas autoridades policiais. "Um amigo estava na Alemanha e, na volta, ele me deu um disco de vinil do Black Box, que fazia muito sucesso na época com a música 'Ride on Time'. Nós íamos com toda a produção na boate, não era como é hoje. Nós chegávamos 'de menininho' e nos maquiávamos lá dentro", revela. "Acabou o show? Tira tudo. Se nos pegassem montadas na rua, nós tínhamos que assinar como 'vadiagem' na delegacia. Felizmente, isso nunca aconteceu comigo, mas já aconteceu com diversas outras amigas", completa. Ícone do 'bate cabelo' Márcia Pantera revisita carreira e 'abre o jogo' sobre vício em drogas A originalidade de Márcia Pantera vai muito além do pioneirismo no mundo drag queen. Suas performances, conhecidas por cabelos longos, trançados, sendo batidos e jogados de um lado para o outro com uma batida enérgica são motivo de referência e inspiração de artistas até os dias atuais. Assista acima. Apesar do significado cultural que a dança criada por ela possui no meio, a drag admite que tudo surgiu por meio de um erro durante uma coreografia que apresentava no início da carreira. "Eu fui apresentar uma música do Michael Jackson que gostava muito. Os movimentos não estavam tão claros e o público também não sabia. Eu errei um passo e acabei jogando o cabelo de um lado para o outro e, nisso, foi o início do 'bate cabelo'", relembra. Com o passar do tempo, o movimento foi se aprimorando cada vez mais, até chegar no que é conhecido nos dias atuais. Segundo Márcia, a técnica é simples: girar o cabelo no formato do número oito. "Minha tia trançou todo o meu cabelo e eu comprei um aplique que, em casa, ela tirou todas as tiras e costurou direto nas tranças. Nas apresentações, as pessoas ficavam chocadas. Eu passei a não bater só o cabelo para trás, mas, sim, fazer um número oito com o pescoço. Essa minha técnica foi ficando cada vez maior e cada vez mais reconhecida", detalha. Initial plugin text Já no sucesso, Pantera conta que diversas colegas de trabalho a procuraram para reproduzir o movimento tão amado pelo público LGBTQIA+. Mesmo sendo uma "marca registrada", ela afirma que sempre ensinou a sua arte com muito prazer para todas. "Eu fui passando para uma, para outra, sempre com muita gentileza. Durante toda a minha vida, sempre me deram muito carinho e amor, e eu doo isso às pessoas também. Não pensei, de forma alguma, que não gostaria que alguém fizesse o que eu estava fazendo. Sempre deixei tudo muito bem aberto", explica. "Quando cheguei na cena, fui muito bem recebida pelas transformistas e pelas travestis. Nunca, jamais me deixaram de lado. Me deram apoio e me emprestaram coisas quando eu não tinha. Eu fiz exatamente isso com as que chegaram depois de mim. A Márcia Pantera é uma mulher gigante e cheia de sorriso", complementa. Vício em drogas Por mais que o mundo drag e as festas nas baladas sejam um mundo interessantíssimo para muitos, existem riscos que podem aparecer, também, em diversos outros lugares, como as drogas e seus respectivos vícios. Infelizmente, Márcia não ficou de fora do índice de pessoas queer que acabaram tendo algum problema com entorpecentes. "Tenho uma história gigantesca com as drogas. Como era do esporte, eu sequer sabia o que era maconha, cocaína ou crack. Nas baladas, eu era aquela pessoa que nem bebia. Via as pessoas com o copo na mão, usando drogas, e eu pensava: 'Gente, estou com fome. Quero comer'. Até o dia que o crack me pegou", revela. Na visão de Márcia Pantera, o primeiro contato com as drogas significou apenas a ponta de um abismo que estava por vir. Em um dos episódios, ela chegou a vender suas roupas, que haviam sido desenhadas pelo renomado estilista Alexandre Herchcovitch, o qual ela considera um grande amigo pessoal. "Eu caí um quilômetro, para cair mais um quilômetro, para cair mais um quilômetro. Eu atingi o fundo do poço de um buraco muito grande e escalei de volta sozinha. Chegou uma fase que eu vendi o meu closet inteiro. Eu fazia show e gastava tudo na noite. Se eu recebesse R$ 2 mil? Eles iam embora. R$ 1,5 mil? Eles iam embora. R$ 100? Ia tudo embora e mais um pouco das amigas", comenta. O período não foi difícil somente para Pantera. Até hoje, ela lamenta a partida precoce de Verônika, amiga e também drag, que acabou sendo assassinada em 2007. Verônika era amiga de Márcia e foi encontrada morta em 2007 Reprodução/Redes sociais "O vício da Verônika foi muito pesado. Ela era muito conhecida, muito aclamada, fez trabalhos grandes. Alguns anos depois, ela foi encontrada morta e eu me assustei muito com isso. Eu perdi muita gente nesse meio tempo e a droga, que me escravizava, acabou se tornando a minha melhor companhia", lamenta. "O traficante, que vende a droga, não vai te matar porque sabe que você vai gostar e vai trazer o dinheiro para ele sempre. Eu perdi muitos amigos que foram sumindo, sumindo e sumindo", acrescenta. Sobriedade há 16 anos Ao g1, a performer comenta que percebeu que chegou ao fundo do poço durante um dos episódios. Ela alega que "sentiu seu coração parar" e, há 16 anos, segue limpa e longe de qualquer tipo de droga ou álcool. "Uma vez, meu irmão, que não morava na cidade, me disse que estava indo embora com um peso enorme na cabeça pois estava sentindo que, na próxima vez, voltaria para me enterrar. Logo depois, houve uma ocasião que eu usei muita droga e eu fiquei estatelada no chão. Senti meu coração parar e, aos poucos, fui voltando. Depois disso, decidi que nunca mais faria algo do tipo", descreve. Ao refletir sobre a sua carreira, Márcia conta que se arrepende apenas das drogas e que, tirando isso, passaria por tudo quantas vezes fossem necessárias. Durante a trajetória, ela destaca sua amizade com Herchcovitch, que a ajudou no crescimento profissional. Alexandre Herchcovitch é amigo íntimo de Márcia há muito tempo Divulgação "Eu conheci ele na porta da balada. Foi uma pessoa extremamente gentil comigo desde o começo e me dava roupas novas toda semana. Eu fiz desfile, viajei o país todo e ganhei muito dinheiro. Cheguei até a abrir o show da RuPaul aqui no país. Precisei lembrar dessa Márcia Pantera para sair do buraco. Foi ela quem me salvou", celebra. Do primeiro dia ao episódio do choque, uma década havia se passado. Segundo a drag queen, o apoio das pessoas à sua volta foi essencial para retomar a vida e reconquistar sua personalidade única. "Eu ganhei cada vez mais força e fui abraçada pelas pessoas mais uma vez. Arrumei um emprego, voltei a trabalhar e, aos poucos, eu vi minha irmã sorrir para mim. Vi a minha família voltar. Eu fui reconquistando as pessoas que não acreditavam mais em mim. A partir disso, entendi o quanto eu amava ser a Márcia. Eu nasci com a vontade de ser feliz", compartilha. Carreira consolidada e novidades Márcia viu a comunidade surgir, se transformar e, apesar de ser uma "pantera", conseguiu se adaptar como uma camaleoa às modernidades do cotidiano. Segundo ela, parte disso se deve à sua vontade de continuar vivendo. "Eu acho que acompanhei bem o crescimento disso tudo. Como eu vi o sol nascer de novo, eu queria mostrar quem era Márcia Pantera outra vez. Nessa época, as pessoas achavam que eu continuava 'louca'. Mas não. Eu tenho muita energia para mostrar quem eu sou. Eu estava com sede de viver e aproveitar a minha vida", conta. Nos dias atuais, a carreira de Márcia segue firme e forte. Em breve, ela estreará como a apresentadora oficial da nova temporada do reality show "Descosturando com Herchcovitch", ao lado de Karol Conká, Regina Herchcovitch e do amigo de longa data. "Eu era a pessoa que tinha que estar lá desde o começo. Eu sempre perguntava a ele o motivo de eu nunca estar lá e, neste ano, aconteceram algumas coisas que fizeram o programa precisar de uma apresentadora. Até que um dia ele me ligou e disse: 'Pantera, você está preparada?'", revela. "Para alguns, pode parecer algo pequeno. Eu chorei de alegria assim que recebi o convite. É uma história tão gigantesca, começou com uma amizade na porta da balada e, hoje, ele se tornou a minha família. Eu olho para trás e vejo que tudo foi um aprendizado", celebra. As viagens da artista por todo o país continuam a todo vapor. Neste sábado, ela se apresentará no Trash Brunch, em Jundiaí , que contará com a presença de outras drags ilustres, como Frimes, Anubis e Hannelle. "Ao lado de outras personalidades incríveis, eu vou chegar carregada de muita energia e mostrar o porquê de eu estar aqui. Logo quando minha contratante chegou com a proposta, eu aceitei. Será um espetáculo, junto de atrações incríveis", finaliza. O Trash Brunch será no Ibis Hotel Jundiaí, que fica na Avenida Nove de Julho, 2.921, no Anhangabaú. Os ingressos estão disponíveis no site. Márcia Pantera estará em Jundiaí (SP) para o evento Trash Brunch Márcia Pantera/Arquivo pessoal *Colaborou sob supervisão de Gabriela Almeida Veja mais notícias da região no g1 Sorocaba e Jundiaí VÍDEOS: assista às reportagens da TV TEM